Teologia e Arte Sequencial


Este blog é um espaço que traz assuntos relacionados ao universo das histórias em quadrinhos sob o olhar de uma teologia de fronteira, isto é, de um pensamento teológico interdisciplinar voltado à arte, à cultura, ao pensamento de Rubem Alves. É igualmente um espaço para divulgação das pesquisas, trabalhos e exposições (de pesquisas e artigos científicos) desenvolvidos por mim, Iuri Andréas Reblin.


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quarta-feira, 27 de julho de 2011

Entrevista sobre Super-heróis


FONTE: FACULDADES EST - Clique aqui para acessar o link direto da entrevista.


Iuri Andréas Reblin, doutorando do PPG/EST e co-organizador de Super-Heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos (2011) e autor de Para o Alto e Avante: uma análise do universo criativo dos super-heróis (2008). 

Doutorando do PPG/EST, nesta entrevista Iuri Andréas Reblin apresenta um universo paralelo, direcionado ao entretenimento mas calcado no real, repleto de singularidades, poder, magia e fascinação, chamado “mundo dos quadrinhos”.

Habitado por super-heróis, este mundo ficcional vem cativando gerações desde o início da década de 40 do século passado. Hoje, para além da narrativa de histórias despretensiosas, o gibi também é lugar para o debate de temas delicados como drogadição, DSTs, relação de gênero e homoafetividade.

Constituídos a partir dos ideários e das experiências de seus criadores, Iuri argumenta que os super-heróis são amados pelo que representam: “a coragem, o altruísmo, a disposição para o sacrifício em prol do outro, a determinação, enfim, princípios nobres difíceis de se encontrar ou de se ver espelhado na sociedade em geral”.

Tachadas de pseudoarte por uma elite pensante, as narrativas da superaventura foram, de fato, idealizadas com intuito de divertir. No entanto, sua função lúdica também faz sentir, pensar, refletir e enxergar o mundo a partir das lentes de um personagem inserido num determinado contexto sócio-cultural, com o qual compartilhamos nossos medos, angústias e ambições. É inegável, conforme ressalta Iuri, a identificação do leitor com os valores, desafios e problemáticas enfrentadas por seu super-herói, que, de forma mais ou menos precisa, o faz emergir num universo ficcional nem tão distante daquele vivenciado na cotidianidade.

Confira abaixo a entrevista completa: 

1) De que forma é possível compreender a cultura, os hábitos e os valores de uma determinada sociedade a partir da leitura das sagas ficcionais trilhadas por seus super-heróis? 
Iuri - Simplesmente lendo as histórias. Ao ler histórias de ficção, mergulhamos no universo que nos é contado. Esse universo contado para nós não é moldado a partir do nada, mas é criado com base no modelo que o autor e, num espectro mais amplo, a sociedade em que o autor habita possuem sobre a realidade e suas vicissitudes. Nessa perspectiva, é possível afirmar que as histórias dos super-heróis são uma espécie de “janela da realidade” a partir da qual temos acesso a um mundo ficcional, calcado no real. Esse mundo ficcional se distingue particularmente do mundo real por ser uma versão compacta e limitada a narrativa e suas descrições. Assim sendo, certos valores e hábitos, crenças e princípios, se sobressairão de acordo com a intencionalidade da história. 

2) Teus livros remetem a discussão em torno de grandes áreas do conhecimento, tais como a teologia, a sociologia, a psicologia e a antropologia. Desde quando as histórias em quadrinhos deixaram de ser leitura direcionada ao público infantil? 

Iuri - Desde que esse público infantil leitor de quadrinhos cresceu e continua crescendo, quer dizer, envelhecendo. Para muitos, ler quadrinhos torna-se um verdadeiro hábito. Naturalmente, existe uma infinidade de histórias em quadrinhos e, claro, há aquelas histórias voltadas especificamente para crianças e adolescentes. Entretanto, se estamos falando aqui especialmente do gênero da superaventura, não podemos considerá-lo sem presumir um amadurecimento de autores e leitores.

Quando brinquei que a história em quadrinhos deixou de ser uma leitura direcionada ao público infantil a partir do momento em que seus leitores cresceram há sim um fundo de verdade. Se, do início da década de 1940 até o final da década de 1950, as histórias eram mais despretensiosas, na segunda e na terceira onda (a partir da Era de Prata, mas, sobretudo, a partir da Era de Bronze) as narrativas começam a adquirir cada vez mais um grau de complexidade: temas delicados como a questão das drogas, das doenças sexualmente transmissíveis, principalmente, a AIDS, as relações de gênero, as questões atinentes à etnia, à homoafetividade começam a ser discutidos e abordados cada vez mais nas histórias em quadrinhos. E vale lembrar, como ressaltou Roberto Guedes no início do seu “A Era de Bronze dos Super-heróis”,  a segunda e a terceira gerações de artistas são constituídas, sobretudo, de fãs que cresceram lendo as histórias e sonhavam, algum dia, poder desenhar e escrever as histórias de seus personagens preferidos. Claro que nada impede que crianças comprem quadrinhos de super-heróis e acabem se tornando leitoras assíduas. Entretanto, pela linguagem, pelos temas das histórias, pelo grau de violência e até pela indicação de faixa etária recomendada de algumas edições, as histórias em quadrinhos deixaram, há muito tempo, de ser “coisa de criança”.

Além disso, nunca é demais lembrar que, quando as histórias em quadrinhos foram consagrando seu lugar no mercado, não demorou para surgirem quadrinhos para todos os tipos de gosto: ao lado das histórias infantis, havia as histórias de ficção, as histórias de horror, os quadrinhos eróticos, os policiais e, claro, os quadrinhos de super-heróis, os verdadeiros responsáveis pelo boom dos quadrinhos; enfim, havia diversos tipos de quadrinhos para todos os gostos e para todas as idades.

Os quadrinhos de super-heróis, na verdade, sempre foram mais voltados para adolescentes e jovens e, com o envelhecimento do público originário, adultos também. Não ficarei surpreso quando idosos entrarem na estatística do público consumidor de quadrinhos (risos). Essa mudança de público, ou, antes, sua ampliação, também é perceptível pelo lançamento, cada vez mais corrente, de álbuns de luxo, de edições encadernadas voltadas especialmente para o leitor-colecionador. São edições com papel especial, capa dura que pesam significativamente no bolso do leitor casual. Assim, para resumir, podemos dizer que as histórias em quadrinhos, em especial aqui os quadrinhos de super-herói, já deixaram de ser literatura direcionada ao público infantil há muito tempo.


3) Na sua avaliação, existe uma relação direta entre os valores e preceitos defendidos pelos super-heróis e a constituição da personalidade dos seus leitores? 

Iuri - Acredito que a professora Denise D’Aurea Tardeli, que participa dessa coletânea de textos organizada por Nildo Viana e por mim com um texto intitulado “Super-heróis na construção da personalidade” poderia responder melhor essa questão. Entretanto, pela minha experiência no estudo das narrativas e da narratividade humana – isto é, no ato de contar histórias – e suas relações no processo de invenção do mundo e elaboração da personalidade, eu poderia apontar para a seguinte direção: existe uma relação entre o autor das histórias e as histórias dos super-heróis em si e existe uma relação entre as histórias e o público-leitor. A tua pergunta é se os valores e os preceitos defendidos pelos super-heróis interferem de alguma forma na constituição da personalidade de seus leitores. A resposta é sim e não.

Minha impressão é que a resposta não é precisa, porque ela é subjetiva, depende de cada indivíduo, e a essa dependência também se encontra relacionada a questão da faixa etária. Para a Denise, por exemplo, as histórias de super-heróis podem sim contribuir para o processo de amadurecimento das crianças tanto ao abordar arquétipos quanto ao lidar com emoções e apresentar soluções simbólicas, como ela chama, para os problemas que as crianças – bem como pessoas de outras faixas etárias – enfrentam no cotidiano. Há tanto um ideal quanto uma moral e uma postura ética implicadas nas narrativas dos super-heróis. Como ressaltou Jeph Loeb e Tom Morris no seu texto publicado no livro “Super-heróis e a filosofia”, os super-heróis são exemplos morais para as pessoas, eles mostram o que é certo e o que é errado e quais tipos de escolha são mais adequados a serem realizados.

Nesse sentido, cada vez mais surgem exemplos pitorescos e, por vezes, até preocupantes na mídia em geral. Essa semana [19 de julho de 2011], por exemplo, no Chile, estudantes se vestiram de super-heróis para protestar contra as reformas educacionais propostas pelo presidente Sebastián Piñera. Isto é, eles se revestiram de um poder simbólico que transcende as dinâmicas e as artimanhas políticas, um poder simbólico que remete a um princípio de justiça claro para fazer valer o seu protesto, para que seu protesto seja ouvido. Além disso, anos atrás, uma criança que brincava vestida de Homem-Aranha resgatou um bebê de uma casa em chamas [8 de novembro de 2007], porque é isso que o Homem-Aranha faria e, de fato fez, no segundo filme da trilogia dirigida por Sam Raimi. Sem falar no lado extremo, isto é, nos fantasiados que se tornam vigilantes e realizam boas ações e até evitam assaltos nos Estados Unidos, colocando sua vida em risco; ou mesmo como acontece com muitas outras crianças que não possuem uma distinção clara entre ficção e realidade.

Agora, se considerarmos que o público que lê histórias de super-heróis é mais juvenil e adulto, pode ser que, antes de interferir na constituição da personalidade, a leitura das histórias o faça reconhecer nelas diversos valores e princípios que o próprio leitor considera válidos, isto é, pode emergir antes um processo de identificação reflexiva no leitor. Por exemplo, um adolescente que tem dificuldades de achar uma namorada pode se identificar com certos super-heróis que possuem a mesma dificuldade de sociabilidade e de relacionamentos.

Em qualquer um desses casos, uma coisa é verdade: as pessoas não leriam histórias de super-heróis – e estas não fariam tanto sucesso – se não gostassem delas e se não houvesse nelas ou na comunicação entre ambos um princípio de identificação, quer seja de valores, quer seja de uma história específica que é narrada, quer seja pelo desafio e pelos problemas do Homem-Aranha, quer seja pelos músculos ou pela luta pela justiça do Superman. E, nesse sentido, há um quê de verdade naquilo que a Tia May, no segundo filme do Homem-Aranha, diz para o sobrinho dela e que transcrevi num texto intitulado “A teologia e a saga dos super-heróis: valores e crenças apresentados e representados no gibi”, que foi publicado na Protestantismo em Revista.

A questão por trás da fala da Tia May é por que Henry, a criança vizinha, quer ser igual ao Homem Aranha quando crescer. A Tia May diz o seguinte “Ele conhece um herói quando ele vê um. Há poucos por aí, voando e salvando pessoas idosas como eu. E Deus sabe, crianças, como Henry, precisam de um herói. Pessoas corajosas, altruístas, servindo de exemplos para todos nós. Todos adoram heróis. Pessoas fazem fila para vê-los. Torcem por eles. Gritam seus nomes. E, anos mais tarde, eles contam como ficaram na chuva por horas só para ver de relance aquele que os ensinou a agüentar um segundo a mais. Eu acredito que existe um herói em todos nós, que nos mantêm honestos, nos dá força, nos enobrece e, finalmente, nos permite morrer com orgulho. Mesmo que às vezes tenhamos que estar preparados e desistir daquilo que mais queremos. Até mesmo de nossos sonhos.”

Enfim, as pessoas amam os super-heróis pelo que ele representa: a coragem, o altruísmo, a disposição para o sacrifício em prol do outro, a determinação, enfim, princípios nobres difíceis de se encontrar ou de se ver espelhado na sociedade em geral.

4) Existe algum super-herói tipicamente brasileiro? Em quais aspectos ele difere do estereótipo do super-herói norte-americano? 

Iuri - Existem inúmeros super-heróis brasileiros e os mais conhecidos atualmente, isto é, que eu particularmente conheço e acompanho são Velta, Nova, Cometa, Meteoro, Penitência, Crânio, Cabala, Capitão 7 e O Gralha. Cada um desses personagens possui uma trajetória específica – ao passo que alguns possuem décadas de existência, outros são significativamente recentes – e está constituindo uma mitologia própria, à medida que suas histórias vão sendo publicadas, adquirindo consistência e seus autores e leitores vão se tornando mais íntimos desses mesmos personagens.

Cada um desses personagens é, a meu ver, a sua maneira, um legítimo herói nacional. Porque, afinal de contas, o que constitui a identidade de um personagem de ficção senão o conjunto justaposto e intransitivo de histórias, experiências e ideais herdados por seus criadores? Ou seja, o criador é brasileiro, vive no país, lida com acontecimentos e notícias veiculados pela mídia brasileira – e, embora goste ou admire o cinema americano, as séries de televisão e as músicas importadas e é igualmente influenciado por elas –sua leitura de mundo e seus sonhos partem de um contexto específico, brasileiro, mesmo que esse contexto também tenha um quê de estrangeirismo não exclusivamente, embora principalmente, americano. Talvez não tenhamos especificamente aquilo que podemos chamar de legítimo super-herói brasileiro assim como o Superman ou o Capitão América é para os Estados Unidos. Talvez, o que temos são antes super-heróis locais porque existem muitos Brasis. Temos um super-herói curitibano, uma super-heroína paraibana, um super-herói catarinense, etc. Agora, uma coisa é definitivamente brasileira: a dificuldade financeira em produzir e divulgar, a dificuldade de se tornar conhecido.

A massiva maioria dos quadrinhos nacionais de super-heróis são produções independentes, impressas em papel comum, em preto e branco, vendidas por correio e postadas diretamente por seus criadores, ou são disponibilizadas gratuitamente para download na Internet. E as produções que são publicadas por editoras são edições especiais, sem a periodicidade das revistas de super-heróis americanos. Em outras palavras, atualmente, é muito complicado sustentar um quadrinho de super-herói nacional no mercado.

Agora, retomando a pergunta sobre a tipicidade brasileira e sua distinção com o estereótipo de super-herói do atlântico norte, é importante ressaltar o seguinte: o super-herói enquanto personagem tal como impregnado no imaginário cultural hoje é de fato uma criação estadunidense. Não há como fugir disso. Assim, num espectro amplo, todos os super-heróis são, em maior ou em menor escala, baseados no modelo estadunidense. O que define um super-herói é a missão ou a jornada, o supervilão, o uso do uniforme, os superpoderes. Esses elementos foram se constituindo e definindo o gênero da superaventura, bem como o próprio modelo de super-herói, aquilo que pode ser reconhecido como super-herói, a partir das histórias daquele que foi o precursor de todos: o Superman. Então, numa macroescala, podemos afirmar provocativamente que não há distinção, porque o super-herói é um personagem de ficção típico – criado, gestado, difundido – dos Estados Unidos. Agora, numa microescala, podemos sim reconhecer distinções e estas podem ser as mais diversas, quer seja o enredo das narrativas, quer seja na estética das histórias ou do personagem, quer seja por suas motivações pessoas que o tornaram quem ele é, etc. Enfim, em algumas histórias poderemos identificar mais elementos próximos ao modelo estadunidense, em outras menos. Em todo o caso, esse jogo de diferenciação e semelhança não deve ser a preocupação principal, mas sim se tem uma boa história para contar e se essa história diz um pouco mais sobre nós mesmos e nossas motivações e, principalmente, se ela é capaz de nos divertir. 

5) Em que medida a narrativa da superaventura pode ser considerada enquanto “janela da realidade”? O que enxergamos pelas brechas dessa janela? 

Iuri - A narrativa da superaventura e, num espectro mais amplo, as histórias em quadrinhos em geral, podem ser consideradas “janelas da realidade” à medida que, enquanto histórias, elas retratam o contexto no qual e para o qual são escritas, os anseios de um grupo e as inspirações e as aspirações de uma sociedade. As histórias de ficção sempre são um retrato do real, ora mais nítido, ora mais confuso, pois é essa representação que possibilitará a comunicação e, consequentemente, nosso envolvimento com a narrativa. É nessa direção que Umberto Eco vai afirmar que “os mundos ficcionais são parasitas do mundo real”.  E o que enxergamos por essa janela é justamente a amálgama difusa que é a vida humana.

6) Quais aspectos tipicamente teológicos podem ser observados nas histórias protagonizadas pelo Capitão Marvel e pelo Mago Shazam? 

Iuri - Eu abordo esse tema especificamente no meu texto da coletânea de “Super-heróis, cultura e sociedade”, organizada em conjunto com o professor Nildo Viana, o livro que estamos lançando este mês [julho] e que deve estar nas livrarias no decorrer do segundo semestre deste ano. De uma maneira sintética, para não tirar o prazer daqueles que comprarão o livro e lerão o texto, podemos dizer que os aspectos “tipicamente” – digo tipicamente entre aspas – teológicos se concentram no uso da palavra mágica que transforma os adolescentes no super-herói. Isso porque a palavra é um acróstico formado a partir das iniciais dos nomes das entidades mítico-religiosas que concedem uma fração de seus dons àquele que pronuncia a palavra. Naturalmente, não é qualquer um que, ao pronunciar a palavra, se transforma em Capitão Marvel, é necessário que seja estabelecido um vínculo – na história, isso acontece por meio de um encanto realizado pelo mago – isto é, é necessário que a pessoa seja escolhida, e quem a escolhe é o mago. Então, os aspectos teológicos se delineiam a partir da relação que se estabelece entre essas entidades – Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio – e os adolescentes, relação mediada pelo pronunciamento da palavra mágica, e a argumentação da própria narrativa de como essa relação acontece. Entretanto, não é só por essa relação explícita que aspectos teológicos, ou num contexto maior, aspectos religiosos, emergem.

Pensando nas narrativas dos super-heróis como um todo, aspectos teológicos podem emergir de diversas formas, de acordo com a intencionalidade da narrativa, quer seja ao abordar caricatamente o universo do sobrenatural, descrever cenários, quer seja ao apresentar as ações do personagem e as razões dele fazer o que faz. Em qualquer um dos casos, é importante salientar que os aspectos teológicos que serão evocados são expressões de uma teologia do cotidiano; isto é, são expressões de uma teologia que permeia o cotidiano e se confunde nele, uma teologia que é constituída, elaborada e reelaborada pelas pessoas no dia a dia. Isto é, trata-se de uma teologia que pode escapar das artimanhas das instituições e dos limites disciplinares da academia e tem a ver muito mais com as respostas que as próprias pessoas elaboram – e a forma como compreendem – para si diante dos desafios que enfrentam no dia a dia. Nessa perspectiva, é necessário superar e combater a visão disciplinar que temos das coisas a partir da academia. Desse modo, eu posso responder à pergunta de uma maneira totalmente diferente. Eu posso dizer que não há elementos tipicamente teológicos em qualquer narrativa de super-herói. Por quê? Justamente porque, nessas narrativas, magia, religião, mito, cultura, economia, se misturam, se imiscuem, se confundem, se interpenetram. Não é possível separar os elementos de uma narrativa, assim como não é possível fazê-lo na vida real. As representações transcritas nas narrativas são um reflexo, preciso ou não, do mundo em que vivemos. 

7) A partir de um olhar transdisciplinar, teus livros, de certa forma, reconfiguram o lugar clássico ocupado pelo gênero da superaventura enquanto narrativa direcionada ao mundo do entretenimento. Devemos nós, adultos, reler os clássicos em quadrinhos sob outro ponto de vista? 

Iuri - Não. Nós devemos ler as histórias em quadrinhos como sempre lemos, para nos divertir com as tramas. É esse o propósito dessas histórias. Se lermos as histórias em quadrinhos buscando toda vez dissecar as narrativas, as histórias em quadrinhos perderão seu brilho e seu encanto. O Superman vai se tornar tão chato quanto ler a Introdução ao Antigo Testamento de Werner Schmidt na graduação em teologia, que é uma leitura obrigatória. A própria leitura perderá a graça. As narrativas da superaventura são entretenimento e estão voltadas ao mundo do entretenimento. Agora, isso não significa que, por causa desse propósito, elas devem ser desprezadas ou discriminadas tal como aconteceu décadas atrás, ou ainda consideradas irrelevantes pseudoarte, porcaria, por uma elite pensante, científica, acadêmica. Ao contrário, cada vez mais pessoas e instituições têm descoberto e redescoberto o potencial das histórias em quadrinhos. E, ao lermos as histórias em quadrinhos para nos divertirmos, nos distrairmos, temos que ter em mente – e aí entra em jogo essa ideia de reconfiguração do lugar clássico – que as histórias em quadrinhos, as narrativas dos super-heróis são histórias que contamos de nós mesmos para nós mesmos, pensando aqui num sentido paradoxalmente amplo e particular. Elas são uma espécie de retrato do mundo, de uma visão de mundo, de uma sociedade, de um grupo. É justamente nesse propósito de se reconfigurar o lugar clássico das histórias em quadrinhos e de se atentar para a diversidade criativa de suas histórias que livros sobre esse universo fantástico são escritos. E é nessa perspectiva que devemos levar essas histórias a sério, porque o ser humano é justamente formado, como disse anteriormente, por essa justaposição imprecisa e intransitiva de histórias que herdamos, incorporamos, adaptamos e transformamos. É nessa direção que pensadores como Jorge Larrosa, Umberto Eco, Rubem Alves e outros vão associar a constituição do ser humano – de ele ser quem ele é –  com um palimpsesto. E quem disse que é só com as coisas sérias que se aprende? O entretenimento não é algo vazio, destituído de aprendizagem, reflexão e sentido. Devemos superar essa distinção entre o funcional e o não-funcional. Devemos compreender o entretenimento de outra forma e entender que, no lazer, nós não cessamos de sentir, pensar, refletir. E essa é uma das percepções singulares de Rubem Alves ao defender uma educação lúdica. 

8) Qual vem sendo a reação do público ao se deparar com narrativas que resgatam temas como religião, cultura, comportamento e crenças a partir de histórias de super-heróis? 

Iuri - A reação do público é a mesma que tem sido ao longo de todos os anos anteriores, porque o importante é a história que é contada, lida e reinterpretada. As pessoas não lêem as histórias dos super-heróis esperando lá encontrar temas como religião, cultura, comportamento e crenças. Elas querem se divertir, se entreter, espairecer. Elas querem saber o que está acontecendo com seu personagem preferido, querem torcer por ele, chorar por ele, se preocupar com ele e ver como o super-herói, em sua jornada, enfrentará e vencerá os desafios que surgirem diante dele. À parte das histórias que possuem pretensamente a intenção de abordar um tema religioso – algo que é geralmente bastante pontual e até significativamente raro nas narrativas dos super-heróis – a presença de elementos ou temas religiosos acontece antes de forma muito mais sutil e casual, na abordagem de temas como esperança, altruísmo, justiça, ética, e de como o autor costura as argumentações em torno desses temas. 

9) Qual é o teu grande super-herói? Por quê? 

Iuri - Acho que essa é a pergunta mais difícil de responder (risos). Meu grande super-herói depende do dia, do momento e do meu humor. Entretanto, de uma maneira em geral sempre me senti mais atraído pelos personagens da DC Comics. Apesar de umas escapulidas e de umas espiadas na concorrente Marvel, eu me considero um decenauta legítimo. Eu cresci assistindo os desenhos da Hannah-Barbera e da Filmation, assistindo seriados na televisão como o Batman da década de 1960, Shazam, Superboy, além de Hulk, Homem-Aranha, no decorrer da década de 1980 e The Flash e Lois & Clark na década de 1990. Uma das imagens mais surpreendente da infância foi quando assisti o Superman de Christopher Reeve numa televisão em preto e branco na Sessão da Tarde e descobri, posteriormente, os robôs dos Tokusatsu japoneses, com o perdão da redundância. Claro que não passei minha infância toda na frente da televisão. Na verdade, os horários estipulados para assistir televisão eram restritos e definidos segundo uma grade de tarefas – fazer dever de casa, brincar na rua, etc. Mas os super-heróis sempre me acompanharam nos mais diversos momentos da vida, nas brincadeiras, nos gibis que eu comprava e lia. Enfim, fazem parte do meu imaginário. Assim, dependendo do dia, do momento e do meu humor, me volto mais a um ou outro personagem. Em todo o caso, para nomear os personagens que mais me interessam, posso afirmar que sou um grande fã de uma tríade que oscila em preferência: Superman, Capitão Marvel e Mulher Maravilha. Naturalmente, Superman é o personagem mais constante. Entretanto, em pé de igualdade está o Capitão Marvel, com quem tenho me ocupado significativamente nos últimos anos, e a Mulher Maravilha, a qual, juntamente com a Supergirl e, numa escala menor, as Aves de Rapina e o Lanterna Verde têm me divertido nas horas de folga. Por quê? É difícil dizer racionalmente. Vamos dizer apenas que sempre tive um apreço maior por histórias que envolvem ficção, magia e mitologia. Nessa direção, acho que, se houvesse atualmente um gibi do Capitão Marvel, eu seria o primeiro a esperar na banca. Portanto, no momento desta entrevista, a tríade está mais para a seguinte ordem: Capitão Marvel – Mulher Maravilha – Superman (risos). 

Jornalista Responsável: Micael Vier Behs

Data de publicação da entrevista no site: 27 de julho de 2011.

Visite o acesso direto ao link da entrevista clicando aqui.

Fonte: Site Oficial da Faculdades EST

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