Teologia e Arte Sequencial


Este blog é um espaço que traz assuntos relacionados ao universo das histórias em quadrinhos sob o olhar de uma teologia de fronteira, isto é, de um pensamento teológico interdisciplinar voltado à arte, à cultura, ao pensamento de Rubem Alves. É igualmente um espaço para divulgação das pesquisas, trabalhos e exposições (de pesquisas e artigos científicos) desenvolvidos por mim, Iuri Andréas Reblin.


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terça-feira, 17 de abril de 2012

Entrevista ao Site da Faculdades EST

Abaixo na íntegra a entrevista publicada no site da Faculdades EST:
(Acesse o link original da entrevista clicando aqui)




17/04/2012 - Nesta entrevista, o Prof. Dr. Iuri Andréas Reblin situa as histórias em quadrinhos como lugar profícuo para o debate de temas teológicos em diálogo com a superaventura.

Tendo a sua tese de doutorado aprovada com distinção no contexto do Programa de Pós-Graduação da EST, nesta entrevista o Prof. Dr. Iuri Andréas Reblin situa as histórias em quadrinhos como lugar profícuo para o debate de temas teológicos em diálogo com a superaventura.
Popularizadas na década de 40 do século passado, as narrativas dos super-heróis foram, no início, interpretadas como uma ameaça aos valores aristocráticos na medida em que, enquanto cultura de massa, colocavam em xeque os parâmetros hegemônicos relacionados às produções culturais.
Segundo Reblin, a vida do super-herói poder reunir tanto características humanas quanto divinas, situando-o como “uma paródia de nós mesmos”, das nossas crenças, medos e valores.
A tese sugere que a leitura atenta das superaventuras contribui para o debate em torno de questões caras à teologia latino-americana, tais como violência, direitos humanos e gênero. Também favorece o discernimento sobre questões relacionadas à teologia tradicional, tais como vida e morte, ressurreição e ética. Por fim, a superaventura adentra assuntos que se tornaram motivo de conflito e tensionamento entre o religioso e o secular, a exemplo de aborto, eutanásia e relação homoafetiva.
Confira abaixo a entrevista completa de Iuri, atualmente inserido no quadro docente da Faculdades EST.

Por que os quadrinhos, historicamente, foram desprezados pela comunidade acadêmica enquanto objeto de pesquisa?

Devido a uma soma de fatores, na verdade. Durante a primeira metade do século passado, havia a compreensão de que a arte e a cultura (leia-se: a chamada cultura erudita ou alta cultura) e os valores aristocráticos estavam em risco por causa da ascensão da indústria cultural, da reprodução em série. Acreditava-se que as obras de arte, a música erudita não poderiam ser reproduzidas, consumidas e comercializadas em larga escala sob o perigo de se converter a arte em Kitsch. Os teóricos da Escola de Frankfurt, por exemplo, levantaram diversos questionamentos sobre o status das produções culturais diante da ascensão do contexto pós-Revolução Industrial e sugeriram, inclusive, como a cultura poderia ou deveria ser entendida nesse contexto. As Histórias em Quadrinhos surgem exatamente no meio disso como uma expressão artística desse novo cenário social. Com a explosão dos quadrinhos nas décadas de 1930, mas, especialmente, de 1940, os estudiosos voltaram sua atenção para o que estava acontecendo à sua volta. A repercussão e o consumo estrondoso dos quadrinhos levantaram questionamentos acerca da salubridade dessa leitura. E, para complicar a situação de vez, um renomado psiquiatra alemão, naturalizado estadunidense, chamado Fredric Wertham, afirmou que as histórias em quadrinhos estimulavam a violência, o sadismo e a delinquência juvenil. A repercussão de suas afirmações, aliada a uma imprensa conversadora que criou mais polêmica ainda sobre o assunto, foi gravíssima para as histórias em quadrinhos, causando, inclusive, uma retranca artística nas suas produções.


Como foi a receptividade da tua tese no contexto do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST?

Minha tese sobre quadrinhos em geral e sobre a superaventura em especial no contexto do Programa de Pós-Graduação em Teologia da Faculdades EST foi uma proposta que amadureceu ao longo dos anos. Minha preocupação com as produções artístico-culturais da era contemporânea já me acompanhava desde a graduação no Bacharelado em Teologia. Já naquela época, eu buscava relacionar o pensamento teológico com o cinema e as histórias em quadrinhos. Meu Trabalho de Conclusão de Curso, por exemplo, foi um ensaio sobre a axiologia e a religiosidade nas histórias em quadrinhos, em especial, numa história do Superman. Ao ingressar, anos mais tarde, no Mestrado, eu apresentei uma proposta similar, mas eu senti que eu precisava encontrar um referencial teórico teológico que fornecesse a sustentação necessária para essa incursão analítica. Foi nesse processo que me deparei com a reflexão tradicional clássica da teologia que me questionava de revesgueio: “o que a teologia tem a ver com histórias em quadrinhos?”, “o que a teologia tem a ver com super-heróis?”. Nas entrelinhas, a minha interpretação era a seguinte: “não perca o tempo com bobagens”. “essa é uma pesquisa desinteressante para a academia”. O que aconteceu foi que eu me deparei, na verdade, com as mais distintas reações, evidentemente, como eu as percebi. Havia aqueles que queriam ver como eu me sairia com o assunto na área, os curiosos, havia aqueles que me apoiavam e aqueles que desconfiavam das minhas intenções, como acontece em toda a academia: pessoas diferentes, tradições diferentes, intenções diferentes de pesquisa, etc. Lembro-me de certa ocasião em que um professor, que trabalhava no programa na época, soltou uma gargalhada na sala de aula quando mencionei que minha pesquisa se ocupava com o Homem-Aranha. Claro que ele logo viu que não se tratava de piada. Na época, não foi “nada de mais”, exceto que eu fiquei conhecido como “aquele que pesquisa o Homem-Aranha”. Nos bastidores, as pessoas, vira e volta, vinham conversar comigo e me sondavam para tentar saber mais a respeito, para dizer que liam ou não liam, leram ou não leram quadrinhos, mas que assistiam filmes de super-heróis, etc. Enfim, esse mesmo professor apresentou possibilidades teóricas de outras áreas do saber interessantes para minha pesquisa, mas, apesar disso, o recado estava dado. Mesmo que tenha sido em tom de brincadeira, eu sabia que ninguém me levaria a sério se eu não trouxesse um referencial, um quadro teórico capaz de suprir a ponte que havia entre a teologia e as produções culturais. Ou seja, eu sentia, por um lado, nitidamente a pressão de um pensamento teológico clássico, mas, por outro lado, também encontrava simpatizantes das minhas ideias. Havia uma turma que discutia fortemente o pensamento do teólogo alemão Paul Tillich, o qual se ocupou magistralmente com a arte e as expressões culturais, delineando, inclusive, um método muito interessante de análise da cultura. Acreditavam que o que iria acontecer era eu seguir naturalmente o mesmo caminho e fazer uma leitura das histórias dos super-heróis baseando-me no pensamento tillichiano. Mas, na verdade, o que aconteceu antes foi outro processo: esse constante questionamento da relevância da minha pesquisa me deixou inseguro em relação à própria teologia. Será que estávamos todos falando a mesma linguagem? Será que era eu que não conseguia ver a teologia da forma adequada com que aparecia para mim? Eu estava no caminho correto? Eu não conseguia aceitar a ideia de que a teologia se preocupava sobremaneira com as “coisas divinas” e que as “coisas divinas” deveriam ser interpretadas, lidas e ditas para o bem da sociedade. Para mim a teologia sempre tem a ver com um contexto. Até comecei a suspeitar se o que eu estava fazendo não era uma espécie de ciências da religião, porque a minha preocupação se concentrava não no dizer de Deus, mas no que as pessoas no dia a dia pensavam sobre Deus e como elas expressavam isso. Assim, abandonei o Homem-Aranha naquele momento e acabei me ocupando no mestrado com uma compreensão de teologia que fosse capaz de satisfazer essas minhas angústias pessoais. Naturalmente, existem aqueles que ainda questionam se eu, então, havia feito a escolha correta, porque escolhi o pensamento de Rubem Alves, e Rubem Alves era um dissidente, havia renunciado à teologia e vertido por outros caminhos. Ou seja, eu continuava na contramão do que usualmente se entendia o que deveria ser o saber teológico. Naturalmente, ele fez isso diante um tipo específico de teologia e buscou outros cheiros e sabores que saciavam suas angústias. O fato é que seu pensamento delineou novos horizontes para mim e me possibilitou novas maneiras de pensar a realidade e, inclusive, de compreender a própria Teologia da Libertação. Isso porque o Rubem Alves não pensa em “caixinhas”. Ele é um cozinheiro de palavras nato. Ele mistura as palavras, conceitos e ideias de tal maneira (transdisciplinar) que instigam pensamentos não pensados. Enfim, no mestrado, acabei encontrando em Rubem Alves um pensamento capaz de me auxiliar a pensar novas relações entre a teologia e a vida social cotidiana. Além disso, naturalmente, não posso deixar de dizer que eu tive muito apoio da turma da área de religião e educação que já, na teologia, lida, de uma maneira criativa, na fronteira do saber teológico. Assim, quando ingressei no doutorado (após uma longa caminhada de mais de uma década na EST, desconsideradas idas e vindas) eu já estava certo do que queria, e eu tinha, diante de mim, os recursos para encontrar as ferramentas que pudessem resolver meu problema: a relação entre teologia e histórias em quadrinhos. De uma maneira em geral, eu não tive problemas em apresentar um tema então atípico para a teologia na EST. Em resumo: o contexto da EST enquanto academia e centro renomado de pesquisa é único e sempre me provocou a ir além, tanto para resolver minhas angústias particulares em relação à teologia quanto para buscar um olhar fronteiriço em diálogo com a superaventura. Agora, eu já sou suspeito para falar, mas, em minha opinião, a EST não é só um centro de pesquisa teológica, altamente qualificado, em termos de estrutura técnica (recursos) e pessoal (corpo docente), é um centro de pesquisa que realiza o princípio básico de todo processo educativo segundo Rubem Alves: ela ensina a pensar.


Em que medida as discussões atuais, especialmente àquelas vinculadas ao mundo teológico, também estão inseridas nas histórias em quadrinhos?
Em primeiro lugar, depende do que eu entendo como discussões atuais vinculadas especialmente ao mundo teológico. Posso entender essas discussões como todas aquelas que interferem diretamente na vida humana e na forma como essa vida é vivida, como, por exemplo, a questão da violência, do gênero, dos direitos humanos, da pobreza, isto é, como assuntos implicados diretamente a um jeito particular de se compreender e de se fazer teologia no contexto latino-americano. Mas posso entender também como questões relacionadas à teologia tradicional: vida e morte, ressurreição, a ação de Deus no mundo, a postura ética, os valores cristãos; como posso entender ainda os assuntos considerados nevrálgicos na vida social nos quais as coisas tendem a se misturar e, frequentemente, a se confundir; isto é, os temas cadentes que se tornam zonas de conflito e disputas de poder e de tensão entre o religioso e o secular: aborto, eutanásia, relação homoafetiva, etc. Todos esses exemplos arrolados aqui e uma infinidade de variações podem ser encontrados nas histórias em quadrinhos. Isso porque as histórias em quadrinhos são produções culturais e, enquanto produções culturais, elas são estão inseridas dentro de um contexto e são representantes deste. Mais ainda, as histórias em quadrinhos são  apresentações e representações do mundo. Elas são, na verdade, uma rede imbricada de relações que tensionam o interesse de um grupo, os anseios de um público, a intencionalidade de autores e o universo simbólico-cultural compactuado (ora mais, ora menos) entre eles. Como já afirmei em outras ocasiões, tudo pode ser encontrado nas histórias em quadrinhos sujeito à intencionalidade da narrativa.


A leitura das histórias em quadrinhos consta nos parâmetros curriculares nacionais. Isso significa uma reavaliação em torno do significado e relevância desse material enquanto instrumento educativo, surgido no contexto da emergência da cultura de massa?

Esse é um tema polêmico. Como afirmou Paulo Ramos em uma palestra sobre educação, leitura e histórias em quadrinhos a poucas semanas atrás, por um lado, representa sim um avanço significativo em termos de ensino e de políticas educacionais em relação ao lugar das histórias em quadrinhos. Há um incentivo e até uma obrigação na utilização das histórias em quadrinhos em sala de aula, na produção de material didático, etc. Por outro lado, entretanto, há uma série de limitações, porque esse mesmo lugar das histórias em quadrinhos ainda não está claro aos olhos do governo, uma vez que uma leitura dos últimos editais do Programa Nacional Biblioteca na Escola evidencie uma preferência por histórias em quadrinhos que sejam adaptações de literaturas clássicas. Ou seja, ainda é possível identificar claramente que há um processo de transição e de aceitação das histórias em quadrinhos enquanto histórias em quadrinhos. 


Em que medida os super-heróis e a teologia se encontram no ato de contar histórias, nas histórias em quadrinhos, nos mitos e nas lendas que visam testemunhar a experiência das pessoas em sua relação com a vida e ao mundo religioso?

Super-heróis e teologia se encontram no ato de contar histórias, num contexto amplo, e nas histórias em quadrinhos, num contexto particular, em três perspectivas: uma perspectiva temática, pelo fato de ambas abordarem temas significativamente comuns: a questão da morte, da injustiça, do mal, etc., resguardadas suas particularidades; uma perspectiva metodológica, pelo caráter mítico que permeia as histórias de ambos os “gêneros”, isto é, tanto as histórias de super-heróis quanto as narrativas religiosas e/ou teológicas são, no fundo, rememorações; uma perspectiva ideológica, pelo fato de ambas quererem, dentro da intencionalidade de suas narrativas, apresentar um ideal no real.


O super-herói se aproxima de uma concepção divina? Ele transcende a condição humana ou apresenta fraquezas e problemas que também afligem o ser humano?

É difícil dizer com precisão o que o super-herói é. Ele se aproxima de uma concepção divina? Sim. Ele transcende a condição humana? Sim. Ele apresenta fraquezas e problemas que também afligem o ser humano? Sim. Na verdade, ele pode ser (e na maioria das vezes é) tudo isso ao mesmo tempo, porque ele é um personagem. Enquanto tal, ele é uma paródia de nós mesmos, de quem nós fomos; de quem nós somos; de quem nós sonhamos ser; de quem nós podemos vir a ser. O personagem deriva da mesma raiz de pessoa, persona, que remete a um papel que é desempenhado, uma máscara que é assumida por nós na vida social cotidiana. Enquanto personagem, o super-herói também é um “super-homem de massa”, para utilizar aqui o termo empregado por Umberto Eco, isto é, um herói carismático, individual, que pode ser, ora mais, ora menos, moralmente carregado, típico em um tipo específico de literatura que é produzida e comercializada para uma gama de leitores: o romance de folhetim. Ele se constitui por meio de uma tensão entre os anseios dos leitores e os anseios dirigidos aos leitores.


Finalizada a tese, quais são os seus projetos futuros?

Profissional e academicamente, vou continua envolvido com histórias em quadrinhos. Isto é, desenvolver novos projetos de pesquisa, estreitar as relações interdisciplinares e interinstitucionais com outros grupos e pesquisadores de arte sequencial, bem como desenvolver trabalhos em sala de aula, na graduação e na pós, dentro da minha especificidade: a leitura dos quadrinhos, do cinema, das narrativas contemporâneas, a relação entre teologia e histórias em quadrinhos, teologia e as produções culturais da era contemporânea.

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